sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O Brasil traçado pela trajetória da bola*



*Entrevista publicada pelo jornal Brasil de Fato, edição de 9 a 15 de setembro de 2010.

Renato Godoy de Toledo
da Redação

Em “Futebol uma janela para o Brasil” o historiador Felipe Dias Carrilho relata, de maneira metafórica e metalínguística, a trajetória do futebol brasileiro. Tal qual uma partida de futebol, o livro inicia com a preleção e termina com o apito final.
De maneira didática, a obra contempla desde aficionados pelo esporte até leigos. Para o autor, o futebol é um “janela privilegiada” para observar os acontecimentos sociais e políticos do Brasil.
O historiador já colaborou com o jornal Brasil de Fato e atualmente é um dos apresentadores do programa “100 anos de história”, transmitido aos sábados pela Web Rádio Coringão.
Confira abaixo entrevista com o autor.

Em seu livro, você afirma que o futebol foi negligenciado pela classe acadêmica por muitos anos. Como você explica esse desprezo?

Acho que há dois níveis para se abordar esse problema. Por um lado, isso se deve às próprias limitações metodológicas e de abordagem das Ciências Humanas em geral. Durante muito tempo, a História, por exemplo, foi concebida como uma narrativa dos principais fatos da política de uma nação. O que interessavam eram os atos, as medidas tomadas por governantes, fossem eles reis, papas ou presidentes... Temas, como a cultura popular, ou os esportes, eram considerados menores, ou simplesmente ignorados. Isso começou a mudar na Europa a partir dos anos 1930, com a eclosão da Escola dos Annales, na França, que abriu o leque de possibilidades temáticas para a historiografia. Mas esse movimento demorou a se disseminar mesmo na Europa. Só atingiu a produção acadêmica brasileira décadas depois. Ainda hoje o futebol é um tema marginal para boa parte da nossa intelectualidade.
Por outro lado, existe uma questão intrínseca à concepção histórica do futebol. Historicamente, o futebol foi uma espécie de normatização das práticas populares de lazer, conduzida pelas elites que lideraram o processo de industrialização na Inglaterra do século XIX. Até esse ponto, se não era explorado cientificamente pela intelectualidade, ao menos tinha o seu respaldo enquanto elemento constitutivo de virtudes como a disciplina, a lealdade ou a higiene corporal. No entanto, à medida que foi se tornando popular, com a inclusão de negros e operários entre seus praticantes, o futebol passou a ser duramente criticado pelos nossos intelectuais. Rui Barbosa, por exemplo, chamou os jogadores da seleção brasileira de 1916 de “corja de malandros e vagabundos”. Até intelectuais de esquerda, como Graciliano Ramos e Lima Barreto não perceberam o potencial de mobilização do futebol, classificando-o como estrangeirismo barato.

Há momentos na história brasileira em que o futebol serve como "ensaio geral" para os acontecimentos sociais e políticos?

Nunca havia pensado nessa metáfora leninista, mas acho que pode ilustrar muito bem o futebol em alguns casos. Se pensarmos que a Democracia Corinthiana, de certo modo, antecipou o movimento das Diretas Já, é válida. Não sei, apenas, se podemos dizer que isso serve como uma teoria ou uma regra geral do futebol. O que talvez possamos afirmar é que existe algo que está na estrutura do jogo e que é rebelde na essência. Não é à toa que o futebol é muito mal visto, ainda hoje, pelos EUA. Não foram poucas as vezes em que jornalistas estadunidenses se referiram ao que eles chamam de “soccer” como um esporte de gente “esquerdista” e “pouco confiável”. Recentemente, um apresentador de televisão “parabenizou” a nação por “fazer parte, oficialmente, do terceiro mundo”, no momento em que a seleção dos EUA havia se classificado para as oitavas-de-final da Copa da África do Sul.
Não podemos desconsiderar outras questões, mas a própria lógica interna do futebol representa um desconforto à utopia neoliberal. O futebol é, por excelência, o lugar privilegiado do acaso e da incerteza, o único esporte em que o mais fraco tem sempre boas chances de derrotar o mais forte. Além disso, o futebol não pode ser quantificado... Aliás, o resultado do jogo não pode ser definido pela somatória de determinadas ações, muito diferente do que acontece no futebol americano ou no basquete.

Em "Futebol uma Janela para o Brasil" você cita o intelectual brasileiro José Miguel Wisnik que salienta que uma Copa do Mundo diz muito sobre o momento que vive o país. Na sua opinião, o que pode se inferir a partir da participação brasileira no Mundial da África do Sul?

Em geral, o historiador teme comentar fatos tão recentes, em nome de certa distância temporal crítica. Acho que, no mínimo, é possível perceber, por essa Copa, o crescimento das religiões evangélicas no Brasil (risos). Havia um número imenso de jogadores evangélicos no time, como Kaká, Elano, Felipe Melo... Mas, falando sério, acho que essa Copa mostrou claramente que não superamos, ainda, a moral disciplinadora dos tempos do amadorismo. Penso que a lógica do favor, tão presente nas problematizações sociológicas sobre o Brasil, ficou evidenciada na convocação do Dunga, que não abriu mão de nenhum de seus “homens de confiança”.

O futebol é um esporte que nasce na elite, mas depois passa a aceitar os negros e operários. Porque esse processo não foi acompanhado pela sociedade em geral?

Aí eu gostaria de esboçar uma teoria do futebol, ao menos do brasileiro. Parece-me que historicamente esse esporte funcionou como uma espécie de sublimação dos conflitos sociais do Brasil, no sentido freudiano do termo mesmo. Veja que é uma ideia muito diferente da concepção preconceituosa da “válvula de escape”, que procura enfatizar um aspecto dito “alienante” do futebol. Acho que o futebol foi um importante meio de resistência e luta dos negros brasileiros. A própria ideia de “democracia racial”, do Gilberto Freyre - que foi muito criticada por causa da persistência do racismo no país -, tem a sua melhor realização no futebol brasileiro, mais especificamente na seleção brasileira.
Não que eu esteja dizendo que não há racismo no futebol, pelo contrário. Mas acho que é no futebol, e talvez na nossa música popular, que a utopia de uma sociedade multirracial e harmônica se realiza da maneira mais promissora. E, nesse sentido, o futebol não é mero entretenimento, mas um horizonte aberto para o futuro do país.

No livro, a atuação da seleção brasileira tricampeã em 1970 é retratada quase como uma "afronta" ao que você denominou "pátria em coturnos". Na sua opinião, a prática do que convencionou-se chamar futebol arte rivalizou com a estrutura militarizada daquela delegação? Em outros termos, dá para dizer que o preterido João Saldanha já havia "contaminado" aquela equipe?

Não acho que tenha sido a figura progressista de João Saldanha o fator determinante para essa aparente contradição. Na verdade, prefiro pensar que o futebol-arte é um prodígio da nossa cultura popular, que é um fenômeno muito mais profundo do que qualquer situação política, sempre passageira por definição. Fernand Braudel dizia que a História é como o oceano, em que os fatos são representados pelas pequenas ondas e oscilações da superfície. O verdadeiro movimento da História estaria nas correntezas mais profundas do mar, nas estruturas, como a sociedade, a cultura... A cultura de um povo é um fenômeno de longa duração, como costumam dizer os historiadores. O futebol mágico apresentado pelo time de 1970 é, talvez, a expressão futebolística máxima da originalidade da formação cultural brasileira, assim como um grande disco do João Gilberto, para forçar a comparação com a música.

Ao comentar o fracasso da seleção brasileira em 2006, você cita que aquele escrete já está forjado no modelo neoliberal globalizante, já que os principais craques atuavam na Europa com salário exorbitantes. Você acredita que o individualismo (a busca de marcas individuais, como maior número de gols, maior número de partidas com a seleção etc), exacerbado pelo neoliberalismo, possa ter contribuído para aquela derrota?

O fato, em si, de a seleção ter sido derrotada não diz nada. O problema foi o time não ter correspondido a todas as expectativas e ao seu próprio potencial, não jogando bem. A cobertura midiática excessiva gerou um efeito ilusório sobre os jogadores e sobre todo o país. Sabemos que a fetichização das mercadorias é um elemento marcante do ideário neoliberal. Nesse caso, houve uma fetichização dos jogadores. O que não foi uma novidade, pois isso é uma tendência mundial há algumas décadas. É que o fracasso de 2006 foi o melhor retrato desse fenômeno.

Se o futebol nasce das elites e é praticamente dominado pelas classes mais pobres, parece haver agora um movimento inverso com uma elitização. Você aponta a realização da Copa de 2014 no Brasil como um trampolim para essa exclusão do povo dos estádios. Explique essa sua opinião.

Na verdade, a realização da Copa de 2014 no Brasil não é o motivo desse processo que está sendo chamado de elitização do futebol. A Copa é apenas o evento privilegiado para se olhar para esse processo, pois nesse momento as condições irão se acirrar, o preço dos ingressos, por exemplo, aumentará como nunca. Temos agora o Estatuto do Torcedor, que, de fato, impõe uma série de restrições a quem frequenta os estádios. No entanto, a elitização é um projeto muito velho, que está apenas se cristalizando agora. Ela é, no Brasil, fruto da profissionalização do futebol, que começou na década de 1930. Se, por um lado, a regulamentação trabalhista do jogador de futebol permitiu que setores marginalizados da nossa sociedade pudessem ser remunerados enquanto profissionais do esporte, por outro lado, isso reproduziu as condições gerias e precárias do trabalho no Brasil. Ou seja, uma pequena elite muito bem remunerada de trabalhadores parece ofuscar os rendimentos modestos da maioria. Sem falar no desemprego... No futebol isso é gritante, com as transações milionárias envolvendo nossos jogadores rumo ao futebol exterior. Não se trata, portanto, de voltar às várzeas... Para se democratizar o futebol, de fato, é preciso superar o modelo atual por meio de um projeto que leve em conta não apenas o esporte, mas a política e toda a sociedade.