sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

ANT: uma voz contra a elitização do futebol*

Felipe Carrilho

“A religião é o ópio do povo” é uma das mais conhecidas frases de Karl Marx. Apesar da minha confessa admiração pela obra do pensador alemão, nunca consegui esconder certa ressalva em relação à sentença.

Dita isoladamente, a máxima estabelece uma regra geral para o papel social dos narcóticos e das crenças metafísicas (dito alienante), sem considerar os usos, as especificidades dos mais variados sistemas de representação mítica do universo, nem avaliá-los em perspectiva histórica.

Mas o pior acontece quando algum sabichão – geralmente metido a intelectual e esnobe – resolve adaptar a frase ao mundo da bola. “O futebol é o ópio do povo”, brada com ar de originalidade, e prossegue em sua perspicaz análise: “o Brasil não vai para frente porque o povo gosta mesmo é de pão e circo”.

Nem parece que estamos falando do esporte que um político conservador estadunidense, Jack Kemp, há alguns anos tratou de atacar de modo sintomático: “que se faça uma distinção entre o futebol norte-americano, democrático e capitalista, e o outro, europeu e socialista”. Sim, nos EUA o futebol é visto como uma atividade “suspeita”, de gente “esquerdista”.

E, como não bastassem os exemplos de resistência futebolística histórica do povo brasileiro, como da inclusão social do negro pelo exemplo de figuras emblemáticas – que vão de Friedenreich a Pelé, passando pelo goleiro Barbosa -, ou de afirmação da nossa cultura popular, com a conquista de cinco Copas do Mundo, surge agora mais um testemunho do potencial de mobilização do futebol: a ANT – Associação Nacional dos Torcedores.

Fundada há apenas um mês, dia 10 outubro, no Rio de Janeiro, a ANT é uma organização sem fins lucrativos que congrega torcedores de todos os clubes do Brasil. O objetivo geral é lutar contra a elitização do futebol brasileiro, cristalizada pela eminência da realização da Copa do Mundo de 2014 no país.

Sim, o futebol é a nossa cachaça, sem a qual ninguém segura o rojão das injustiças sociais. Abaixo, alguns tópicos, que podem ser encontrados no site da associação, e que dão conta do adversário a ser batido.

“1- A exclusão do povo brasileiro dos estádios de futebol, fruto de uma política deliberada de diminuição da capacidade dos estádios, extinção de setores populares e aumento abusivo dos ingressos.

2- O desrespeito à cultura torcedora, com a extinção de áreas populares, como a geral, onde há uma tradição própria de participação no espetáculo, que inclui assistir ao jogo de pé (o que acontece na Alemanha).

3- A falta de transparência no futebol brasileiro, há décadas nas mãos de dirigentes incompetentes e corruptos; exigimos a democratização das decisões acerca do futebol brasileiro, com a participação dos torcedores; por exemplo: as sucessivas e milionárias reformas do Maracanã, feitas sem nenhuma consulta aos torcedores.

4- A exploração politiqueira do futebol visando eleger candidatos que se aproveitam da sua popularidade para conseguir mandatos contra o povo.

5- O controle das tabelas e horários dos campeonatos na mão da rede de televisão que há décadas detém o lucrativo monopólio das transmissões televisivas de jogos de futebol; horário máximo de 20h para o início das partidas durante a semana e 17h aos domingos.

6- A retirada de comunidades de trabalhadores em nome da Copa do Mundo e das Olimpíadas.

7- A falta de meios de transporte dignos durante os dias de jogos; exigimos esquemas especiais em dias de jogos”.

Veja também esse vídeo informativo:

http://www.youtube.com/watch?v=XUsYObVtc5I

*Texto publicado originalmente no site Escrevinhador.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Unificação dos títulos: CBF é anacrônica*

por Felipe Carrilho

A decisão da CBF de unificar os títulos nacionais, considerando os disputados no período entre 1959 e 1970 é, sem dúvida, anacrônica. E não estamos empregando aqui o termo com o seu sentido cotidiano, como sinônimo de retrocesso ou de atraso. Anacronismo é, resumidamente, o movimento de transportar valores, ideias ou instituições do presente para tempos passados.

É justamente o que fez a CBF ao equiparar os títulos da Taça Brasil e do Torneio Roberto Gomes Pedrosa com os do Campeonato Brasileiro, organizado a partir de 1971. Ora, dizer que o Palmeiras e o Santos conquistaram oito títulos brasileiros é o mesmo que proclamar, oficialmente, Dom Pedro o primeiro presidente da República do Brasil.

Uma coisa é discutir a história do futebol no País, valorizando os torneios do passado em correspondência com o período histórico em que foram disputados, outra é inventar um discurso histórico oficialesco com uma canetada. A memória futebolística brasileira não precisava disso.

Ademais, se fôssemos aprofundar o argumento anacrônico da entidade que rege o futebol nacional, teríamos de colocar na pauta do dia a oficialização dos vencedores do antigo Torneio Rio-São Paulo como campeões brasileiros, o que seria um absurdo ainda maior, claro, embora absolutamente coerente com a medida adotada.

Esta coluna tem procurado enfatizar as profundas relações entre futebol, sociedade, cultura e política. Mas nesse caso parece que estamos a tratar de mera politicagem. Os grandes clubes do Brasil não precisam de artifícios como esse para ver as suas glórias reconhecidas. Muito menos Pelé, depois de tantas vitórias esportivas legítimas e de todas as homenagens aos seus 70 anos de vida, precisava estampar o peito com 8 medalhas postiças, que nada mais fazem do que arranhar a sua imagem fora das quatro linhas.

*Texto publicado originalmente no site Escrevinhador.