quarta-feira, 30 de setembro de 2009

O futebol e o Brasil na marca do pênalti

por Felipe Carrilho

Todos acompanharam nos noticiários que o presidente da Fifa, Joseph Blatter, pretende proibir a paradinha nas cobranças de pênalti. O mandatário suíço considera a jogada “uma maneira de roubar”, que deveria ser punida com “cartão amarelo e, na insistência, o vermelho”.

Segundo Blatter, ludibriar o goleiro assim já é um desvio de postura condenado pela Fifa, e a permissividade com que alguns árbitros têm tratado o lance seria resultado de uma má interpretação das regras. A Fifa estaria, por isso, preparando uma reedição do regulamento, cujo objetivo é reforçar a condenação à jogada, que deve entrar em vigor ainda neste mês.

Para além das discussões protagonizadas nas grandes mídias do futebol, em que os jornalistas, em geral, não conseguem ultrapassar o âmbito de suas preferências pessoais, é preciso desvendar o substrato do embate que se coloca.

Em seu livro Futebol ao sol e à sombra, o escritor uruguaio Eduardo Galeano assim definiu a importância de Friedenreich para o nosso futebol:

“Este mulato de olhos verdes fundou o modo brasileiro de jogar. Rompeu com os manuais ingleses: ele, ou o diabo que se metia pela planta de seu pé. Friedenreich levou ao solene estádio dos brancos a irreverência dos rapazes cor de café que se divertiam disputando uma bola de trapos nos subúrbios. Assim nasceu um estilo, aberto à fantasia, que prefere o prazer ao resultado. De Friedenreich em diante, o futebol brasileiro que é brasileiro de verdade não tem ângulos retos, do mesmo jeito que as montanhas do Rio de Janeiro e os edifícios de Oscar Niemeyer.”

De uma sociedade, do início do século 20, marcada por desigualdades e tensões raciais e, portanto, caracterizada pela presença da malandragem no jogo social,
nasceu um futebol calcado no improviso e movimento ilusório dos corpos brancos, negros e mulatos dos jogadores. O Brasil moldava o seu futebol, mas por este forjava a sua própria identidade.

Para Roberto DaMatta, a capoeira, arte por excelência da ginga e ludíbrio corporal, seria a grande matriz desse jeito de praticar o futebol. De fato, o propalado “modo
brasileiro de jogar” pode ser visto, historicamente, como uma resposta do país ao reconhecimento anterior de uma escola de futebol argentina e uruguaia, evidenciando também a sua singularidade em relação ao jogo verificado em seus países vizinhos.

Apesar de a atual discussão não ser direcionada explicitamente ao Brasil pelo presidente da Fifa, não há dúvida de que foi o recrudescimento da paradinha nessas terras o fato que desencadeou tal reação normalizante. O fenômeno é tão revestido de brasilidade que vale lembrar o caso do jogo entre Palmeiras e Argentinos Jr., pela Copa Sul-americana de 2008, em que o árbitro colombiano José Buitrago puniu o jogador brasileiro Diego Souza com cartão amarelo por fazer uso da jogada.

Pier Paolo Pasolini, nos anos 70, falava de um futebol praticado em prosa, o europeu, e de outro jogado em poesia, referindo-se ao sul-americano e, principalmente, ao brasileiro. Era a ideia de que, grosso modo, os europeus
exerciam um jogo mais linear e finalista, enquanto os brasileiros jogavam de maneira digressiva e imprevisível.

Resultado contraditório da implantação de um ideal de civilização europeu, o Brasil gerou, assim, um futebol que se revelou uma espécie de efeito colateral de tal experiência histórica. Sob essa perspectiva, o ressurgimento da paradinha pode ser lido como uma nova (e hoje rara) demonstração radical da identidade do futebol brasileiro e do próprio país. Assim, o que a Fifa pretende fazer ao proibi-la soa, num nível mais profundo, como uma imposição cultural europeia com raízes no período colonialista, que vai ao encontro do ideal de massificação do futebol, pasteurizando
o seu conteúdo e tornando-o mais “civilizado” e chato.

2 comentários:

  1. Muito bom o texto, bicho. Também acho ridículo proibir essas artimanhas. Se o pênalti é a penalidade máxima, o prejuízo maior tem que ser do "réu", não da vítima. Então, o goleiro que se vire. O
    utra medida que visa deixar o futebol mais chato é a exigência de "honestidade" por parte do jogador. O caso recente do Eduardo da Silva, do Arsenal, mostra isso. No entanto, a punição dele por conta de uma simulação, ao que parece, envolve outras questões, tais como xenofobia. Já que simular pênalti é coisa de malandro, desonesto, brasileiro.

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  2. É, bicho, parece que os europeus projetam, no futebol, um ideal "civilizatório", que vem de séculos.

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