segunda-feira, 2 de março de 2009

São Paulo e Corinthians em "Linha de passe", de Walter Salles

por Felipe Carrilho



Sempre achei o Walter Salles um bom diretor de cinema, até os 15 minutos finais de seus filmes. Até os 30 do segundo tempo, o cineasta costumava apresentar, com razoável competência, produções de temáticas sociais, com nítida preocupação fotográfica, tratadas com delicadeza, embora em alguns (ou muitos) momentos flertando com a emoção fácil. Mas sempre a coisa começava a desandar até que, no final, vinha a morte súbita do filme.

A cena mais representativa desta "perda de mão" está em "Diários de Motocicleta", uma saga do jovem Ernesto, o futuro revolucionário Che Guevara. Apesar das críticas que apontaram uma certa incoerência na estrutura narrativa do longa, tratou-se de contar, de forma equilibrada, uma aventura de meninos argentinos bem-nascidos e ávidos por um pouco de emoção, em viagem pela América Latina. Mas, claro, "o jogo só acaba quando termina". No clímax do filme, quando Ernestinho começa a se tornar Che, o asmático personagem, no dia de seu aniversário, arrisca-se heroicamente (para não dizer messianicamente) atravessando a nado o riacho de um leprosário peruano – que separa os sãos dos doentes –, embalado por uma trilha sonora de intenções "novelisticamente" dramáticas, para comemorar, do outro lado, o seu dia com os segregados.

Assim, quando fui assistir ao "Linha de passe", confesso que esperava deslizes parecidos. Ainda mais porque se tratava de uma história de um drama familiar na periferia de São Paulo: quatro irmãos e uma mãe grávida do quinto filho. Mas errei no meu prognóstico. O longa foi conduzido de maneira muito diferente da costumeira. Não há, na linguagem do filme, o sentimentalismo de sempre. Os personagens, ao contrário, são duros, incoerentes, humanos.

Porém, não se trata, aqui, de analisar as questões técnicas restritas à produção cinematográfica, mas sim a presença do futebol na trama do filme. E esta se deu de maneira precisa: O enredo, pode-se dizer, desenha alguns tensos momentos de contatos dos membros da acidentada família paulistana com o outro lado da sociedade, a classe média, as elites, no decorrer de suas trajetórias. Os personagens, desse modo, encontram pela frente a dura tarefa de forjar as suas sobrevivências e identidades em meio a uma composição social caótica e essencialmente contraditória. O futebol é, então, habilmente concebido como pano de fundo ilustrativo destas tensões. E, não por acaso, o clássico escolhido, para tanto, é São Paulo e Corinthians, times que, no imaginário futebolístico, representam tradicionalmente os contrastes riqueza/pobreza, elite/povo, ou, mais adequadamente neste caso, centro/periferia.

No aspecto do filme que enfatiza o futebol, a personagem central é certamente Cleusa, a mãe. Corintiana fanática, em muitos takes aparece no estádio, em meio à fiel torcida. Suas desventuras particulares, como a quinta gravidez e a constante ameaça de desemprego, são permeadas por um drama coletivo que ela personifica: a luta do Corinthians para não ser rebaixado à série B do Campeonato Brasileiro e o sofrimento de seus torcedores. Se partirmos do que aconteceu ao time do parque São Jorge ao final da competição, poderíamos ler, no desfecho do filme, a derrota das classes subalternas, representadas alegoricamente pela família paulistana em questão. Mas, é bom que nos lembremos que o jogo que aparece nas telas onde "Linha de passe" é exibido terminou com o placar de 0x1, gol de Betão, o que garante, ao contrário do que acontece na maioria das outras produções de Salles, um final de uma esperança apenas sugerida, e um belo filme.

4 comentários:

  1. Fê, lindo texto. Uma análise bem apropriada e inteligente. Gostei muito do filme. Realidade com sensibilidade.
    Hoje é terça e ainda tenho na boca o gosto adorável do despacho tricolor.
    Ronaldo

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  2. Obrigado, tio. Essa vitória foi histórica!
    Abraço.

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